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As personagens dos filmes de Miranda July têm os seus gestos e os sentimentos a fervilhar. Mas amordaçados pela timidez, falta de afecto e conexão ou mesmo uma certa sociopatia.
Por isso, quando os comportamentos e os diálogos brotam, a excentricidade vem ao de cima como uma criatura que se contorce para se livrar do seu casulo ou um chorrilho de palavras desconexas que clamam por atenção e amor.
July tem a capacidade psicanalítica de desafiar as suas personagens e colocá-las em microcosmos bizarros e algo oníricos (feitos com elementos bem reais), onde estas procuram vias de escape para enfrentar o trauma, o isolamento e a repressão. O longo caminho que percorrem para alcançar o conforto da normalidade e o quão extraordinárias se sentem quando o alcançam, é o seu foco.
No seu novo filme, a sensibilidade e intenção não é diferente. Sobre intimidade e emancipação, manipulação e negligência parental, solidão e expressividade; com humor tão doce como cínico, que procura empatia e comiseração, Kajillionaire é uma comédia dramática peculiar.
Robert (Richard Jenkins) e Theresa Dyne (Debra Winger) educaram, ou melhor, treinaram a sua filha Old Dolio (Evan Rachel Wood), para ser o um instrumento infalível para os seus esquemas e trapaças criminosas.
Os três não sabem comunicar entre si e os pais não a veem como filha, mas como uma ferramenta de trabalho, uma peça útil com capacidade de contorcionista e aparência jovem, a quem nunca deram valor emocional ou até a oportunidade de ter uma identidade própria, visto que o seu nome veio de um sem-abrigo que ganhou a lotaria…
Old Dolio, com vinte seis anos, é uma criatura presa num fato treino largo demais para o seu corpo, de rosto escondido num longo cabelo louro e uma voz monótona de surfista arrapazado. Evan Rachel Wood numa interpretação rígida e de incómodo, grita e contrai-se quando uma mão amiga lhe toca suavemente; dança com os mesmos movimentos que usa para fugir às câmaras de vigilância; liberta-se quase psicoticamente quando descobre que o mundo não vai acabar.

Tudo isto é catalisado por Melanie (Gina Rodriguez), uma jovem desejosa de aventura e de enveredar pela arte de roubar, que se une ao gangue familiar a meio de mais um esquema. Ela despoleta a reacção de Old Dolio para a estranheza da sua própria vida, encaminhando-a numa comovente viagem de descoberta do toque, dos sentimentos, da palavra e da descoberta da sua personalidade.
Miranda July constrói Kajillionaire com poder emocional singelo; com uma perspicaz sensibilidade que ornamenta de magia os desperdícios da vida: a espuma cor de rosa que cai de uma parede, parece ter o encanto de algodão doce; com uma ternura natural: quando alguém às portas da morte, pede aos agora quatro ladrões que ajam normalmente na cozinha, para que tenha som ambiente calmo para poder morrer em paz.
Vai levando-nos assim até um espectro de hipersensibilidade atonal, de empatia com Old Dolio, onde partilhamos com ela a materialização do anseio que a início parecia fantasia, quando estava encerrada no seu mundo de insensibilidade, ausente de paixão e sentimentos.
July assim nos amacia, mas é para depois nos bater forte, relembrando que esta família vem da miséria, do vício da vigarice e do desespero económico e por mais doce que possam parecer, o amargo chega no fim.
Assim, Kajillionaire é um rebuçado indie, de tom esperançoso, que nos atrai pela observação profunda e consegue deleitar-nos mesmo com os sabores mais banais.